Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de 2021

Sorte, azar, Verstappen e Hamilton

O grande problema da decisão tomada por Michael Masi no final do Grande Prêmio de Abu Dhabi foi a jurisprudência. Entende-se que nenhum espetáculo deva terminar com um desfile do Safety Car e o procedimento de liberação dos retardatários foi um tanto quanto confusa, mas o grande pecado é o GP do Azerbaijão. Daquela vez, Max Verstappen estourou um pneu e estampou o muro há seis voltas do fim, jogando fora 26 pontos que pareciam garantidos. O Safety Car entrou na pista, andou por duas ou três voltas e, constatada a impossibilidade de encerrar a corrida com bandeira verde, foi chamada a bandeira vermelha, todos voltaram para o boxe e largaram para duas voltas finais, todos em condições iguais. Dessa vez, Nicholas Latifi bateu despretensiosamente em uma das poucas partes da pista de Yas Marina que não tem área de escape. O Safety Car era óbvio e, a princípio, parecia que não daria tempo de finalizar a corrida com bandeira verde. A jurisprudência deveria balançar uma bandeira vermelha e tod

Pequenos personagens quase cotidianos

Ela apareceu algum tempo atrás, fazendo malabarismo em um semáforo da Avenida dos Trabalhadores. Roupa preta, meias coloridas até o joelho, o rosto pintado de branco, um chapéu engraçado. Jogava seus malabares de um lado para o outro, deixava-os cair constantemente, se confundia com o tempo e muitas vezes precisava sair correndo antes que os carros avançassem, segurando a calça legging que escorregava. Sempre com um sorriso no rosto, agradecendo as moedas que não chegavam no seu chapéu. Por vezes, parecia que era mais uma artista em treinamento. Já se passaram, não sei, pelo menos dois anos desde que ela apareceu por ali e desde então a situação melhorou. Suas roupas continuam as mesmas, mas ela já domina o tempo e o espaço, não precisa sair correndo nem recolher os objetos caídos pelo chão. Não passo por ali todas as manhãs e mesmo nas manhãs em que eu passo nem sempre ela está lá. Nunca lhe dei dinheiro, porque acho que nunca tenho dinheiro na carteira. Mas sua presença ali, naquele

Cemitério de histórias

O Facebook me lembra que há oito anos eu estava em Brasília, trabalhando, ao lado do fotógrafo Lenine Martins de Oliveira. A foto nos mostra parados em frente ao Pátio Shopping Brasil, onde geralmente nos refugiávamos enquanto esperávamos a próxima pauta ou o voo de volta para Cuiabá. Cobrir as pautas do então governador Silval Barbosa em Brasília era um trabalho árduo. Chegávamos no aeroporto com uma previsão de sua agenda, mas muitas delas iam se alterando ao longo do dia e por isso era preciso ficar sempre em contato com o ajudante de ordem do governador, ou com quem fosse possível, para ir atrás dele. Havia um táxi que nos servia enquanto estávamos lá e, muitas vezes, toda agenda da tarde era cancelada e o voo de volta seria apenas 23h. Foi provavelmente em uma dessas situações que posamos para esta foto que hoje me é lembrada. Lenine Martins de Oliveira tinha sobrenome de governador, mas não era parente do Dante. Começou a trabalhar no Governo do Estado em 1972 e só saiu em 2018,

O absurdo da existência humana no tanque de um Corolla

 Paro para abastecer o meu carro é há uma pequena fila no posto de gasolina. Após um breve período de espera, chego na bomba, abro o vidro do carro, desligo o motor e destravo o tanque de combustível. Atrás do meu carro passa um frentista comentando com os colegas que "deu 230 reais pra encher o tanque de um Corolla. Nunca vi isso". O preço do combustível é algo do qual, por vezes, não faz bem se informar. É um negócio que você tem que fazer, não tem jeito, então é melhor só ir abastecer e pronto. Mas, não tem como não sentir o aumento dos preços, como por vezes não perguntar se o frentista não esqueceu de desligar a bomba espalhou combustível pelo chão equivocadamente. Voltando ao referido frentista do referido dia, após comentar sobre o preço do tanque do Corolla, ele se sentou em um cadeira, abaixou a máscara e ficou fitando o vazio. Colegas foram perguntar para ele "o que aconteceu japonês?" e ele repetiu "deu 231 pra abastecer um tanque de um Corolla. 50 l

Carona Siberiana

O relógio marcava 19h e eu ia sair de casa. Abri a porta, fechei, tranquei e me dirigi ao meu carro. Logo que avistei a rua, percebi que um carro estava parado em frente a minha casa, impedindo a minha saída. Era um carro branco, desses sedãs modernos. Estava ligado, com os faróis acessos, vidros abaixados e ninguém no volante. Apenas um cão, um husky siberiano sentado no banco do carona, me encarando. Fiquei olhando para o cachorro e ele olhando para mim. Cheguei a cumprimentá-lo. Minha cabeça tentava processar esta cena de filme, sobre o que um cachorro estava fazendo ali, parado sozinho dentro de um carro ligado em frente a minha casa, olhando para mim. Claro, não foram mais de 10 segundos até que eu percebesse que havia uma mulher conversando com a dona de duas casas abaixo da minha e menos de outros 10 para que ela viesse correndo, pedindo desculpas e avisando que havia parado em frente da casa errada. Ela entrou no carro, apenas engatou a marcha e partiu com o cão no banco do car

21 medalhas, 21 histórias para eternidade

 1) Precisamos falar sobre o Kelvin. O excluído do rolê que, enquanto ainda estávamos nos familiarizando com o skate nas Olimpíadas, acertou uma manobra sobre um corrimão que garantiu a primeira medalha brasileira em Tóquio. 2) Daniel Cargnin foi a Tóquio para brigar, mais do que para lutar. Sempre parecia estar em desvantagem nas suas lutas, mas de alguma forma ele conseguia se manter em pé e encaixar os golpes que garantiram a manutenção da tradição do judô brasileiro nas Olimpíadas. 3) Há cinco anos, Rayssa Leal era uma criança que viralizou na internet fazendo manobras impressionantes no skate vestida de fadinha. Cinco anos depois, ela continua sendo uma criança, só que com uma medalha olímpica. Com 13 anos, Rayssa magnetizou o público no início da madrugada e se transformou na nossa mais jovem medalhista da história. Nas entrevistas pós-façanha, sua voz não escondia. Ela é apenas uma criança. 4) Fernando Scheffer precisou treinar em um açude para manter a forma durante a pandemia.

O choro da ginástica

Ginastas tem olhos tristes. Essa é uma maneira poética de falar que, na verdade, elas tem cara de choro. Olhe para uma ginasta prestes a executar sua performance. Os olhos franzidos, o semblante tenso, os lábios cerrados. Se ela pudesse, choraria naquele momento, mas as lágrimas ficarão para depois da apresentação. Tudo é meio triste na ginástica. Aquelas meninas jovens com seus corpos diminutos, com a necessidade de fazer uma força desmedida, mas mantendo uma graça e sorrisos forçados enquanto rodopiam e giram em tablados e obstáculos, uma imagem de juventude perdida. A pressão pelo erro. Poucos esportes convivem com o erro de maneira tão forte como a ginástica. Os erros geram punições em todos os esportes, mas há aqueles em que eles são raros, ou mera consequência da prova - o objetivo do salto com vara é que uma hora ninguém mais consiga acertar um salto. No judô, ou nos esportes coletivos, um erro só será punido se o adversário souber aproveitar. Já em outros, como os saltos orname

Análise das Mensagens Corporativas de Aniversário

Nos últimos anos tenho aprendido que um dos meus maiores prazeres é fazer análises um tanto quanto jocosas sobre as mensagens corporativas de parabéns que eu recebo no dia do meu aniversário. Vamos a elas. A concessionária onde eu comprei meu carro sete anos atrás afirmou que se orgulha em percorrer diversos caminhos lado a lado comigo. Achei um compromisso forte demais que eles querem assumir, pensando que não mantenho nenhum contato comercial com eles desde que a garantia do meu carro venceu há quatro anos. A Smiles me desejou felicidades, voos e bagagens cheias de momentos transformadores. Por SMS me informou que eles prepararam uma surpresa: um link que redireciona para uma página de parabéns, com imagens estilizadas de um bolo, um presente, taças brindando, balões e um negócio que sempre colocam em imagens de parabéns, um cone do qual papéis coloridos e confetes são expelidos e que, confesso, não sei o nome. Nesta página me era desejada uma ampliação dos meus horizontes, além da d

A Solidão do Seu Raimundo, parte 2

Seu Raimundo começou a cortar cabelos quando tinha 13 anos e, desde então, já se passaram outros 68. Ele conta que, quando começou, precisava subir em caixotes para alcançar a altura dos clientes. Com orgulho, lembra que assentou seu salão na Avenida das Palmeiras – Raimundo Cabelereiro Unissex – em julho de 1990, o que faz do local um dos estabelecimentos mais longevos do Jardim Imperial. Hoje a concorrência é forte, o bairro foi invadido por barbearias com parede de cimento queimado, mesas de sinuca, cerveja artesanal e uma lâmpada giratória colorida conhecida como Barber Pole. Uma delas funciona ao lado do salão de Raimundo. Desgostoso, ele conta que quando vê um cliente vindo pela calçada, sabe que o destino será o salão vizinho. “As pessoas pensam que eu não sei cortar cabelo porque eu sou velho”. Os anos de experiência são fundamentais, ele diz, para que as mãos saibam se adaptar a cada tipo de cabelo. Nesses salões modernos, Raimundo reclama, só se passa a máquina de uma forma q

A irrelevância da seleção

A primeira lembrança que eu tenho da seleção brasileira de futebol é a US Cup de 1993. Não que eu me lembre dos jogos, mas eu lembro da propaganda da TV anunciando aquele grande torneio no qual o Brasil enfrentaria a Alemanha. Logo depois veio a Copa América e aí eu me lembro bem do Boiadeiro perdendo um pênalti e recebendo minha eterna antipatia. Sempre que via ele jogando em um time, automaticamente passava a torcer contra ele. Vieram as eliminatórias, a derrota para a Bolívia, as vaias no Morumbi, o time entrando de mãos dadas, os gols do Romário contra o Uruguai, a preparação para a Copa, o Branco chutando uma falta na cara de um fotógrafo que se machucou pra cacete, a Copa, o tetra e aí a vida de uma criança acompanhando jogos da seleção era muito boa e fácil. Por mais que eu me lembre da imagem do homem ensanguentado, elas não existem na internet Amistosos contra a Lituânia em Teresina, o surgimento de Ronaldo Fenômeno, Copa Ouro. Jogos da seleção eram um evento, até que um dia i

Para a eternidade

O futebol realmente é capaz de produzir momentos para a eternidade, lances que jamais serão esquecidos por quem viu e mesmo por quem apenas ficou sabendo. Momentos que, quando olhados em retrospectiva, já pareciam predestinados ao infinito temporal, mais do que isso, que de alguma forma já pareciam escritos em livros de história mesmo antes de acontecerem. O gol de Aguero que deu o título ao Manchester City. A cabeçada de Van Persie contra a Espanha. O gol do Van Basten contra a União Soviética. A cabeçada do Sergio Ramos na final da Champions League. O gol do Messi contra o Athletic Bilbao (de alguma forma, existiu uma estranha sensação coletiva de que alguma coisa iria acontecer quando Messi pegou a bola despretensiosamente próxima a linha do meio de campo. Enquanto ele avançava parecia ser uma questão de tempo para que o presente encontrasse o futuro que já estava determinado muito antes da existência de qualquer um e coube a todos nós o papel de assistir essa epifania com a respira

Superliga Europeia

Não tem jeito: apenas os torcedores de balancetes podem apoiar a aberração que é a SuperLiga Europeia, nova criação de 12 clubes que se denominaram grandes demais para dividir a atenção com os outros. (aliás, é engraçado que eles ainda esperem o surgimento de outros três times nesta mesma posição para fechar um clubinho de 15). A ganância é a óbvia explicação para este movimento, mas eu vejo particularidades em cada caso. Vale lembrar que 10 dos 12 clubes beligerantes tem donos. O Liverpool, Arsenal e Manchester United pertencem a norte-americanos, o Tottenham está na mão de investidores ingleses, o Manchester City tem seus negócios dirigidos nos Emirados Árabes, enquanto o Chelsea é acariciado por dinheiro russo. O Milan também é um negócio de norte-americanos, enquanto a Internazionale é de Chineses e a Juventus pertence à famiglia Agnelli. Há por último o Atlético de Madrid, controlado por investidores espanhóis. Real Madrid e Barcelona são os únicos dois clubes em um modelo mais as

Duas latas de leite

Ele parecia ser muito mais velho do que eu e tinha nascido no Haiti. Disse que não queria dinheiro, queria apenas comprar duas latas de leite para sua filha de um ano e nove meses e que havia nascido no Brasil. Era praticamente a idade do meu filho, também nascido no Brasil. Falou algumas coisas e tossiu, o que me assustou. Os leites eram Ninho, 1 a 3 anos. Falei que compraria. Cada lata custa vinte e oito reais e alguns centavos. Paguei cinquenta e seis reais e alguns centavos no caixa e entreguei as duas latas de leite para sua filha de um ano e nove meses. Cinquenta e seis reais e alguns centavos não chegam a ser nada, mas eram muito para ele. Enquanto saia do estacionamento o observei atravessando a avenida movimentada carregando as duas latas de leite. Torci para que fosse na paz e pensei por um segundo que ele talvez não fosse muito mais velho do que eu.

As Mangueiras que não existem mais

Todas as ruas do meu bairro tinham nome de plantas, exceto uma. Coqueiros, Seringueiras, Araucárias, Buritis e Pau Brasil dividiam sua existência com uma melancólica Rua Projetada. Talvez pelo costume, em um bairro que reservava travessas para os Biribás, Figueiras e Sebiperunas, a rua sem nome era conhecida como Mangueiral. O nome era auto-explicativo para quem passasse pelo local. Meia dúzia de mangueiras adornavam a esquina da rua não pavimentada, uma linha reta de 350 metros ligando Jardim das Palmeiras e Chácara dos Pinheiros. Durante cinco ou seis anos da minha vida passei por ali todos os dias, retornando do meu colégio para casa. O caminho era um pouco mais longo, coisa de 200 metros a mais do que o outro que passava por dentro do bairro, mas os relatos sobre bicicletas e relógios roubados dentro do bairro me faziam preferir passar por aquela rua erma, cercada de terrenos baldios e cuja única construção era uma fábrica de orelhões de fibra de vidro. Não demorava mais do que qua

Sonhando com a Guerra Civil

Vez por outra, surge por aí um vídeo em que um cidadão aparentemente demente é entrevistado em um programa de TV. Entre as diversas alucinações proferidas pelo indivíduo, está a afirmação de que o Brasil, infelizmente, só vai mudar quando partir para uma guerra civil, fazendo o trabalho que a ditadura militar não fez, de matar pelo menos 30 mil pessoas, começando com o presidente da República. A entrevista é de meados dos anos 90 e o cidadão problemático era o até então desconhecido deputado federal Jair Bolsonaro. Infelizmente, o processo de amadurecimento da nossa democracia levou ao seu consequentemente apodrecimento e hoje esse homem é o presidente da República – o primeiro nome na lista de baixas de sua sonhada guerra civil. Bolsonaro adora repetir o poder que sua caneta BIC tem, mas não tem nenhuma capacidade de tomar qualquer decisão útil para o país. Na falta de coisa melhor para fazer, o presidente vive alimentando o seu desejo recluso de provocar uma guerra civil brasileira.