Neste dia 24 de março de 2013 eu assisti O Poderoso Chefão pela primeira vez. E é bom que se frise que esta foi a minha primeira vez, agora, quando já tenho quase 26 anos.
Desde seu lançamento em 1971, O Poderoso Chefão ganhou ares místicos. Para muitos, é considerado o maior filme da história, sucesso de público e crítica, multipremiado com roteiro brilhante e atuações históricas. Mas eu não pretendo falar sobre o filme, não sou bom para falar de filmes. Prefiro falar da primeira vez.
Com o tempo, passou a ser difícil assumir que eu jamais havia assistido O Poderoso Chefão. Em todos os lugares em que eu ia, estava rodeado por pessoas que já haviam assistido o filme inúmeras vezes. Outros já haviam lido o livro original de Mario Puzo. E eu não. Era o único ser humano que jamais havia assistido O Poderoso Chefão, um motivo de vergonha. Me perguntava em que aula do colégio eu faltei, a aula em que o filme foi exibido. Se questionado, desconversava com discursos evasivos sobre a cena da cabeça do cavalo, ou dizia "pois é, com certeza" sobre alguma cena que eu nem sabia sobre o que se tratava.
Lembro-me bem de algum dia no meio dos anos 90, minhas primas alugaram O Poderoso Chefão, talvez a trilogia completa, para assistir. Mais do que assistir uma obra clássica do cinema, aquele momento tinha um quê de passagem, um rito. Você era um adulto, tinha a possibilidade, a paciência de se sentar diante de uma televisão durante um dia inteiro para assistir um filme denso. Não era mais uma criança em busca de entretenimento rápido.
Esse ritual estava presente desde o momento da locação do filme. Com suas mais de três horas de duração, O Poderoso Chefão não ficava junto com as outras filas, reles mortais em prateleiras simples. O Godfather estava na seção de fitas duplas. Em estantes grossas, juntos com outros clássicos como E o Vento Levou e A Lista de Schindler. Alugar um filme de fita dupla era daquelas coisas que garantiam uma superioridade moral. Você poderia olhar para as outras pessoas na videolocadora e dizer "olhem para mim. Eu alugo fitas duplas". Você precisava estar preparado o suficiente para romper esta barreira.
Com o fim dos VHS, essa mística se foi. Os DVDs eram todos iguais e alugar o Poderoso Chefão em DVD seria um símbolo do fracasso. Seria preciso alugar o filme dizendo "vou rever pela OITAVA vez" ou "mostrarei para meu sobrinho".
Porém, desde que assisti o filme neste último domingo, descobrir que inúmeras outras pessoas jamais haviam o assistido. Percebi que tudo era uma farsa. Que todos estávamos vivendo mentiras, com vergonha de assumir a nossa falta de cultura.
*
Em 1998, estava na quinta-série e Titanic se transformou no maior sucesso da história do cinema mundial. O romance mela-cueca entre Jack Rose ficou nos cinemas cuiabanos durante mais de seis meses. No colégio, me lembro de conviver com pessoas que já haviam assistido o filme duas, três, quatro vezes. Alguns, acredito, iam no cinema todos os dias para ver o filme. Meninas choravam com Leonardo di Caprio, outras argumentavam que não choravam por ele, mas pela banda que tocou esperando a morte.
Quando Titanic ganhou 11 Oscars, colegas meus comentavam que ficaram decepcionados com os 11 prêmios (foram 14 indicações). Eles achavam que Titanic ganharia mais prêmios. "Foi o recorde da história", eu dizia. "Merecia mais", respondiam. Só podia ser o maior filme da história.
Neste cenário, apenas uma pessoa não havia assistido o filme em Cuiabá: eu. Diria, aliás, que eu era um caso raro no Brasil, quiçá no mundo. No começo por desinteresse, não me parecia ser uma história interessante. Depois, foi uma questão de honra. O filme não poderia ser tão bom. Sim, eu era jovem, mas já era fiel aos meus princípios.
Para interlocutores, a quem confessava que não havia ido ao cinema ver Titanic, a reação era de espanto. Um vizinho meu, que já havia visto doze vezes, perguntou assustado porque eu não havia visto. Me ordenou que eu deveria ir no mesmo dia, quase me expulsou de sua casa. Mas, resisti.
Titanic, com suas intermináveis horas de duração, logo entrou para a mística seção das fitas-duplas das videolocadoras. Sua locação ficou esgotada durante, não sei, um ano. Pessoas se presenteavam com a fita. Segui irredutível.
Vi o filme apenas alguns anos depois, quando passou na televisão. Eu sei, o filme era dublado e a televisão não chega nem perto da magia do cinema, mas o filme é muito mela-cueca. O trabalho de efeitos especiais e a reconstrução do barco são sensacionais, mas a história é um saco. O filme é tão meia-boca, que Leonardo di Caprio e Kate Winslet ficaram amaldiçoados. São dois excelentes atores, mas tiveram que trabalhar em muitos filmes bons para começarem a ser levados a sério.
Hoje, Titanic já está reduzido a sua insignificância história. Filme reconhecido por seus efeitos especiais, tecnicamente brilhante, mas que, por exemplo, não ganhou prêmios por atuação ou roteiro.
Hoje, posse até dizer que meus princípios valeram a pena e posso olhar na cara dos meus adversários com superioridade. Eu já sabia que o filme era uma merda.
Desde seu lançamento em 1971, O Poderoso Chefão ganhou ares místicos. Para muitos, é considerado o maior filme da história, sucesso de público e crítica, multipremiado com roteiro brilhante e atuações históricas. Mas eu não pretendo falar sobre o filme, não sou bom para falar de filmes. Prefiro falar da primeira vez.
Com o tempo, passou a ser difícil assumir que eu jamais havia assistido O Poderoso Chefão. Em todos os lugares em que eu ia, estava rodeado por pessoas que já haviam assistido o filme inúmeras vezes. Outros já haviam lido o livro original de Mario Puzo. E eu não. Era o único ser humano que jamais havia assistido O Poderoso Chefão, um motivo de vergonha. Me perguntava em que aula do colégio eu faltei, a aula em que o filme foi exibido. Se questionado, desconversava com discursos evasivos sobre a cena da cabeça do cavalo, ou dizia "pois é, com certeza" sobre alguma cena que eu nem sabia sobre o que se tratava.
Lembro-me bem de algum dia no meio dos anos 90, minhas primas alugaram O Poderoso Chefão, talvez a trilogia completa, para assistir. Mais do que assistir uma obra clássica do cinema, aquele momento tinha um quê de passagem, um rito. Você era um adulto, tinha a possibilidade, a paciência de se sentar diante de uma televisão durante um dia inteiro para assistir um filme denso. Não era mais uma criança em busca de entretenimento rápido.
Esse ritual estava presente desde o momento da locação do filme. Com suas mais de três horas de duração, O Poderoso Chefão não ficava junto com as outras filas, reles mortais em prateleiras simples. O Godfather estava na seção de fitas duplas. Em estantes grossas, juntos com outros clássicos como E o Vento Levou e A Lista de Schindler. Alugar um filme de fita dupla era daquelas coisas que garantiam uma superioridade moral. Você poderia olhar para as outras pessoas na videolocadora e dizer "olhem para mim. Eu alugo fitas duplas". Você precisava estar preparado o suficiente para romper esta barreira.
Com o fim dos VHS, essa mística se foi. Os DVDs eram todos iguais e alugar o Poderoso Chefão em DVD seria um símbolo do fracasso. Seria preciso alugar o filme dizendo "vou rever pela OITAVA vez" ou "mostrarei para meu sobrinho".
Porém, desde que assisti o filme neste último domingo, descobrir que inúmeras outras pessoas jamais haviam o assistido. Percebi que tudo era uma farsa. Que todos estávamos vivendo mentiras, com vergonha de assumir a nossa falta de cultura.
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Em 1998, estava na quinta-série e Titanic se transformou no maior sucesso da história do cinema mundial. O romance mela-cueca entre Jack Rose ficou nos cinemas cuiabanos durante mais de seis meses. No colégio, me lembro de conviver com pessoas que já haviam assistido o filme duas, três, quatro vezes. Alguns, acredito, iam no cinema todos os dias para ver o filme. Meninas choravam com Leonardo di Caprio, outras argumentavam que não choravam por ele, mas pela banda que tocou esperando a morte.
Quando Titanic ganhou 11 Oscars, colegas meus comentavam que ficaram decepcionados com os 11 prêmios (foram 14 indicações). Eles achavam que Titanic ganharia mais prêmios. "Foi o recorde da história", eu dizia. "Merecia mais", respondiam. Só podia ser o maior filme da história.
Neste cenário, apenas uma pessoa não havia assistido o filme em Cuiabá: eu. Diria, aliás, que eu era um caso raro no Brasil, quiçá no mundo. No começo por desinteresse, não me parecia ser uma história interessante. Depois, foi uma questão de honra. O filme não poderia ser tão bom. Sim, eu era jovem, mas já era fiel aos meus princípios.
Para interlocutores, a quem confessava que não havia ido ao cinema ver Titanic, a reação era de espanto. Um vizinho meu, que já havia visto doze vezes, perguntou assustado porque eu não havia visto. Me ordenou que eu deveria ir no mesmo dia, quase me expulsou de sua casa. Mas, resisti.
Titanic, com suas intermináveis horas de duração, logo entrou para a mística seção das fitas-duplas das videolocadoras. Sua locação ficou esgotada durante, não sei, um ano. Pessoas se presenteavam com a fita. Segui irredutível.
Vi o filme apenas alguns anos depois, quando passou na televisão. Eu sei, o filme era dublado e a televisão não chega nem perto da magia do cinema, mas o filme é muito mela-cueca. O trabalho de efeitos especiais e a reconstrução do barco são sensacionais, mas a história é um saco. O filme é tão meia-boca, que Leonardo di Caprio e Kate Winslet ficaram amaldiçoados. São dois excelentes atores, mas tiveram que trabalhar em muitos filmes bons para começarem a ser levados a sério.
Hoje, Titanic já está reduzido a sua insignificância história. Filme reconhecido por seus efeitos especiais, tecnicamente brilhante, mas que, por exemplo, não ganhou prêmios por atuação ou roteiro.
Hoje, posse até dizer que meus princípios valeram a pena e posso olhar na cara dos meus adversários com superioridade. Eu já sabia que o filme era uma merda.
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