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Reflexões Pós-Paul

Acho que sei bem o momento em que tudo ficou claro. Foi durante Something. Uma música que nem é do Paul, mas a qual ele defende com unhas e dentes durante sua homenagem ao amigo George Harrison. Empunhando seu pequeno instrumento, Paul McCartney pediu para todos cantarem por George.

Aproveitando a ausência dos outros instrumentos, a voz e o ukulele de Paul ecoavam pelo Maracanã. As pessoas já cantavam junto, em um momento bem bonito. Até que veio o refrão, que todo mundo ali conhecia. E aquele I Don't Know veio subindo pelas arquibancadas do antigo maior do mundo, criando um daqueles ecos que provocam um sentido de comunhão sagrada. Sim, ali foi possível entender.

Paul McCartney está, talvez, em sua passagem mais unânime pelo Brasil. Sempre houve expectativa em suas outras apresentações, não há registro de uma única viva alma que tenha se arrependido de assistir o Beatle ao vivo. Só que agora ele está velho. Muito velho. Um senhor de 81 anos de idade, que apesar do vigor, já dá sinais de que essa é sua idade mesmo. Contra os males do etarismo, a sociedade já passou a respeitar um pouco as pessoas que tem mais de 60 e 70. Oitenta ainda não. É uma idade assustadora, uma idade naquela onde parece que a pessoa pode morrer a qualquer momento por qualquer coisa, esteja ela bem ou não.

Paul McCartney é uma espécie de divindade. Provavelmente o maior artista vivo, um dos maiores seres humanos, em qualquer área. Um inventor e aperfeiçoador da música pop. Talvez ele pudesse já ter deixado tudo para trás e ter se acomodado em casa, ou fazer shows esporádicos apenas par ganhar mais dinheiro. Mas no palco, Paul McCartney ainda entrega tudo que tem. Tudo que tem aos 81 anos pode ser menos do que há cinco, seis, ou dez anos. Não é justo comparar o Paul de hoje com aquela que tinha menos de 70 anos quando voltou ao Brasil em 2011. Exceto pelo fato de que ele entrega tudo o que pode.

Após Something, veio um caminhão de hits. Desde a bobinha Ob-La-Di, Ob-La-Da, que se há 55 anos enlouqueceu seus companheiros de banda em um longo e doloroso processo de gravação, hoje é capaz de se transformar em um dançante espetáculo de luzes, com balões iluminados por lanternas, uma versão raiz e nada hightech das pulseirinhas do Coldplay. Band on the Run é sempre impressionante, enquanto Get Back e Let It Be juntas superar a carreira de uma centena de bandas. Live and Let Die é um espetáculo visual, enquanto Hey Jude é um momento de congraçamento.

É o típico de coisa que você não percebe na hora, vai percebendo aos poucos. Paul faz o show que quer. E durante sua execução, entrega tudo o que se propôs.

O começo é com Can't Buy Me Love, música explosiva do começo de carreira. Logo depois vem duas músicas menores do Wings, mostrando que Paul está disponível a defender o seu legado e não apenas viver dos hits do passado. Prova isso cantando duas músicas novas (com menos de 10 anos dá para chamar de novas) - New e Come on To Me.

Ninguém sairia de casa para ver Junior's Farm, talvez a menor canção do setlist. Tampouco por Letting Go, momento do aparecimento do seu sensacional trio de metais.

E o começo do show é isso. Paul explora seus metais em Got to Get You Into My Life e Let 'Em In. Promove uma explosão de beleza na sensacional Let Me Roll It, enquanto sola sua guitarra psicodélica.

Paul homenageia os seus. Após Maybe I'm Amazed, das mais sinceras canções de amor - escrita para Linda McCartney, ele toca My Valentine, para sua atual esposa. Talvez ele não seja bobo, mas aqui há um contraste interessante. Enquanto a primeira relata o amor febril de um homem de menos de 30 anos que precisava gritar ao mundo o quanto amava uma mulher, a segunda é fruto de um amor tranquilo do homem de 70 anos, que não se importa com a chuva, porque um dia o sol vai chegar.

Há uma homenagem ao início dos Beatles e Paul transforma uma música besta como In Spite of All the Danger em algo memorável. Love Me Do surge com clima de baile da saudade, dedicada a George Martin. Blackbird não é uma homenagem a ninguém, mas qualquer um pode se sentir homenageado por este momento. Há o momento para John e Denny Laine. Uma homenagem a todos os seus que se foram.

Tudo isso se percebe com o tempo, mas acho que percebi em Something. Quando a música acabou, depois de Paul extender seus versos algumas vezes, era possível sentir a excitação em todo mundo a volta. Um arrepio generalizado de uma multidão que percebeu a maravilha da música, a maravilha de estar naquele dia, naquele momento, cantando aquilo junto com Paul McCartney.

Um publico que ainda se emocionaria com a entrada de John Lennon em I've Got a Feeling, que sentiria a vibração de Helter Skelter e iria para casa com o brilhante medley final do Abbey Road. Ao meu lado um casal que talvez tenha minha idade, talvez fossem cinco anos mais novos. Na minha frente, um casal de adolescentes acompanha o pai e juntos cantam várias músicas abraçados. Uma senhora de 70 e poucos ano assiste o show sentada e se emociona em Blackbird. Atrás de mim, um senhor que talvez tenha a idade de Paul canta Love Me Do, quase em silência. No metrô, um menino com seus 10 anos vai vestindo a camisa ao lado do seu avô. Uma festa de todas as idades que reforça os Beatles como fenômeno pop inigualável.

Once there is a way to get back home

Paul se despede até uma próxima. Que nunca se sabe se vai existir. Ele tem 81 anos, os últimos anos mostraram que nada é tão simples, que próximos encontros podem simplesmente não acontecer. Aquele eco de Something talvez tenha sido a percepção de que tudo aconteceu.

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