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Relógios

Júlio Cortazar já dizia "quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado". (Vale a pena se alongar antes de discorrer sobre a idéia, porque o trecho é genial).

Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você — eles não sabem, o terrível é que não sabem — dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrines das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.
Voltamos.

Se o relógio pode ser um pequeno inferno enfeitado, o que dizer dos relógios decorativos? Desses relógios vendidos em lojas de recordação. A criatividade para desenvolver as formas é impressionante.

Para que fazer um cartão que mostra as horas, se nós podemos colocá-los sobre molas tortas? Colocar o relógio de cabeça para baixo? Que só se consiga enxergar as horas se olhado no espelho? Colocar um relógio pendurado por fios que se ligam a grandes barras laterais. Você não compra o relógio para decorar a sua mesa, mas sim, tem que construir uma casa que se adapte ao relógio. Para piorar, a pilha sempre acaba rápido.

Claro que os relógios se juntam aos apontadores, padrões de azulejo, desenhos de tapete. Outras tantas coisas que me fazem pensar "quem teve a idéia de fazer isso?".

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