Ayrton Senna era meu herói de infância. Uma constatação um tanto banal para um brasileiro nascido no final dos anos 80, todo mundo adorava o Senna, mas eu sentia que era um pouco a mais no meu caso. Eu via todas as corridas, sabia os resultados, o nome dos pilotos e das equipes. No começo de ano comprava revistas com guias para a temporada que iria começar, tinha um macacão e um carrinho de pedal com o qual dava voltas ao redor da casa após cada corrida. Para comemorar as vitórias do Senna ou para fazer justiça com meus pedais as suas derrotas.
Acidentes eram parte da diversão de qualquer corrida. No meu mundo de seis anos, eles corriam sem maiores riscos. Pilotos por vezes davam batidas espetaculares, saiam ricocheteando por aí e depois ficava tudo bem. Já fazia 12 anos que ninguém morria em uma corrida. Oito sem ninguém morrer em qualquer tipo de acidente. Os últimos com mais gravidade tinham sido o do Streiff e do Martin Donelly, mas eu nem sabia disso, para dizer a verdade. Não sabia que pessoas morriam em acidentes de carro. Pouco sabia sobre a morte, tinha perdido um avô recentemente, apenas isso.
Por isso, foi até divertido ver o acidente do Rubinho Barrichello no Globo Esporte da sexta-feira. Ele já estava lá dando entrevista no hospital, é isso, o carro bate e quebra todo, o piloto fica bem. Era isso que eu imaginava até o sábado seguinte.
Estava vendo o treino, é claro, quando a imagem cortou para o carro do Roland Ratzemberger deslizando devagar para o meio da pista. Seu pescoço bambo, claramente havia sangue saindo pela viseira. Minha mãe ficou preocupada, meu pai eu não me lembro. Sinceramente não lembro se cheguei a ver a parte em que ele recebia massagem cardíaca ainda na pista ou se meus pais desligaram a TV antes. Saímos para algum lugar. A vida nos anos 90 envolvia sair para fazer compras todo sábado. Eu achava que ia ficar tudo bem, meu pai dizia que talvez não fosse bem assim.
Lembro do choque quando voltamos para casa e no Jornal Hoje a morte do Ratzemberger estava sendo anunciada. Pilotos morriam. Acidentes tinham consequência. Quem era Ratzemberger? Ninguém sabia direito. Só descobrimos que ele estava morto.
No dia seguinte tinha corrida e lá estava eu. Tinha assistido todas as corridas do ano passado. Ou no máximo perdido uma. Via inclusive aquelas no Japão e na Austrália, as únicas de madrugada. Teve uma batida na largada, o Safety Car entrou. Aquilo era uma novidade que veio da Fórmula Indy. Até recentemente não tinha isso de carro de segurança. Uma batida daquelas resultaria obviamente em uma nova largada.
Foram cinco voltas até a relargada. Senna partiu bem com Schumacher atrás. Todos esperávamos que o Senna seria um fácil vencedor das corridas com a Williams, mas as coisas não estavam bem. Nas corridas o Schumacher era claramente mais rápido. Eu, particularmente, não gostei da ida dele para a Williams. A Williams era minha vilã. Meu time era a McLaren. Ver o Senna com aquele macacão azul era esquisito. Minha sensação interna é que não ia dar certo.
Bem, na segunda volta após a relargada o Senna bateu forte. Eu achava que ia ficar tudo bem, é claro. Geralmente os pilotos não se machucam, ainda mais o Senna. Com o atendimento médico prolongado era possível ver que a situação era ruim, mas acho que eu não tinha dimensão. Deve ter sido uns 20 minutos até o helicóptero sair com ele, mas pelo menos não teve massagem cardíaca na pista. A corrida seguiu, mas a cada instante apareciam notícias terríveis com Roberto Cabrini. A primeira já disse que a situação era ruim, todos ficaram tristes, mas não entendi, acho. Depois ele afirmou que havia ocorrido a morte cerebral. Eu achava que ainda tinha alguma chance, mas meus pais tentaram explicar cautelosamente que não tinha jeito. Depois veio a notícia de que ele morreu.
Não lembro exatamente qual foi minha reação. Aos seis anos eu provavelmente estava descobrindo a forma de viver meu luto infantil. Acho que não tinha noção do que a morte significava. Minha mãe se lembra de ter me visto brincando com carrinhos e chorando. Comprei todos os jornais do dia seguinte e ainda os tenho guardados. Naquele dia teve um Palmeiras x São Paulo que praticamente decidiu o campeonato paulista, mas eu não me lembro de ter visto. Não lembro de nada mais que tenha feito naquele dia.
Nos dias seguintes o país esteve em luto, com imagens impressionantes do seu funeral. Me lembro de Prost e Berger carregando o caixão. Dos tiros de canhão disparados em não sei qual ocasião. Estava terminado e o herói da minha infância não existia mais.
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