Pular para o conteúdo principal

Lembranças do professor Segura

 Reproduzo texto que publiquei no Instagram.

Segura foi meu professor na faculdade. Eram aulas meio caóticas, enquanto ele falava sobre a arte da reportagem e da edição entre um cigarro e outro. Não importava quantas vezes você levasse o texto para ele, sempre haveria modificações, pelo menos até o momento em que você achasse que estava bom. Porque no fundo, não existe um texto perfeito, existe um texto que satisfaz nossas ambições temporárias. 

Depois o Segura foi meu orientador de monografia. Uma orientação sui generis, sem a mínima preocupação com fundamentos básicos da metodologia científica. Sua principal dica foi: esqueça os primeiros capítulos com descrições de métodos e comece logo na análise.

O Segura ainda foi meu chefe, mesmo que não formal. Fiz uns trabalhos para o seu jornal experimental, Ponto Sem Notícia, e jornal do Boa Esperança. A redação consistia em uma sala localizada entre o Bar do Alano e a casa de uma pessoa. Vez por outra a proprietária chegava em casa e passava pelo meio da redação com seu cachorro. O tempo todo bêbados tinham conversas apocalípticas no bar da frente e, inclusive, era possível abrir uma janela e pedir uma bebida diretamente ao dono do bar, provavelmente o Alano em pessoa. Vez por outra o Segura me dava uma carona em sua Belina, na qual ele era capaz de fazer perguntas desconcertantes como "a embreagem é o pedal da esquerda?" diante de uma aparente falha mecânica.

Depois ele ainda foi meu colega de trabalho. Focava em assuntos que ninguém mais se interessava, desprezava pautas óbvias para todos os demais. Não sei exatamente o que aprendi especificamente sobre jornalismo nesse período, mas acho que aprendi um pouco sobre aspectos gerais, talvez banais da vida. E o que não é a produção jornalística se não uma expressão de todas as subjetividades que construímos ao longo da nossa existência?

Agora digo um pouco mais.

Ailton Segura gostava de contar histórias. Uma de suas favoritas é a de que ele foi a primeira pessoa do Brasil a escrever sobre a jogadora de basquete Hortência. Escrevia para a Gazeta Esportiva e assistiu um jogo de uma jogadora de uns 15 ou 16 anos que era vista como um fenômeno.

Segura me disse certa vez que o médico havia lhe recomendado cortar o álcool, a gordura, o açúcar e a bebida para viver mais alguns anos. "Porque eu iria querer viver mais sem isso?", questionou.

Segura não tinha o mais preciso dos textos. Mas sempre procurava a mais precisa palavra. O texto podia parar por algum tempo enquanto essa palavra não surgisse.

Ele não avaliava os alunos. Pedia que eles se dessem as próprias notas. Certa vez eu me dei 9. No boletim saiu um 10, fato do qual tenho orgulho.

Ele adorava colocar seus alunos para lerem Sabrina e outros romances populares de banca de jornal. Era o caminho mais fácil para se aprender a escrever de maneira simples e de fácil entendimento.

Se ele tivesse um ponto de vista, o defenderia até o fim. Até o fim mesmo. Não era afeito as formalidades da vida. Tinha uma visão construtiva da educação, talvez sem formalismos pedagógicos. Acreditava que não tinha que ensinar nada para ninguém, mas sim construir em conjunto um conhecimento. Guiar por caminhos tortuosos. E, fazer compreender que há uma figura principal que tem que estar satisfeito com o que nós fazemos: nós mesmos.

Comentários

Postagens mais visitadas

Desgosto gratuito

É provável que se demore um tempo para começar a gostar de alguém. Você pode até simpatizar pela pessoa, ter uma boa impressão de uma primeira conversa, admirar alguns aspectos de sua personalidade, mas gostar, gostar mesmo é outra história. Vão se alguns meses, talvez anos, uma vida inteira para se estabelecer uma relação que permita dizer que você gosta de uma pessoa. (E aqui não falo de gostar no sentido de querer se casar ou ter relações sexuais com outro indivíduo). O ódio, por outro lado, é gratuito e instantâneo. Você pode simplesmente bater o olho em uma pessoa e não ir com a cara dela, ser místico e dizer que a energia não bateu, ou que o anjo não bateu, ou que alguma coisa abstrata não bateu. Geralmente o desgosto é recíproco e, se parar para pensar, poucas coisas podem ser mais bonitas do que isso: duas pessoas que se odeiam sem nenhum motivo claro e aparente, sem levar nenhum dinheiro por isso, sem nenhuma razão e tampouco alguma consequência. Ninguém vai se matar, brigar n...

Os 27 singles do Oasis: do pior até o melhor

Oasis é uma banda que sempre foi conhecida por lançar grandes b-sides, escondendo músicas que muitas vezes eram melhores do que outras que entraram nos discos. Tanto que uma coletânea deles, The Masterplan, é quase unanimemente considerada o 3º melhor disco deles. Faço aqui então um ranking dos 27 singles lançados pelo Oasis, desde o pior até o melhor. Uma avaliação estritamente pessoal, mas com alguns pequenos critérios: 1) São contados apenas o lançamentos britânicos, então Don't Go Away - lançado apenas no Japão, e os singles australianos não estão na lista. As músicas levadas em consideração são justamente as que estão nos lançamentos do Reino Unido. 2) Tanto a A-Side, quanto as b-sides tem o mesmo peso. Então, uma grande faixa de trabalho acompanhada por músicas irrelevantes pode aparecer atrás de um single mediano, mas com lados B muitos bons. 3) Versões demo lançadas em edições especiais, principalmente a partir de 2002, não entram em contra. A versão White Label de Columbia...

Tentando entender

Talvez a esquerda tenha que entender que o mundo mudou. A lógica da luta coletiva por melhorias, na qual os partidos de esquerda brasileiros se fundaram na reabertura democrática, não existe mais. Não há mais sindicatos fortes lutando por melhorias coletivas nas condições de trabalho. Greves são vistas como transtornos. E a sociedade, enfim, é muito mais individual. É uma característica forte dos jovens. Jovens que não fazem sexo e preferem o prazer solitário, para não ter indisposição com a vontade dos outros. Porque seria diferente na política? O mundo pautado na comunicação virtual é um mundo de experiências individuais compartilhadas, de pessoas que querem resolver seus problemas. É a lógica por trás do empreendedorismo precário, desde quem tem um pequeno comércio em um bairro periférico, passando por quem vende comida na rua, ou por quem trabalha para um aplicativo. Não são pessoas que necessariamente querem tomar uma decisão coletiva, mas que precisam que seus problemas individua...