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Desgosto gratuito

É provável que se demore um tempo para começar a gostar de alguém. Você pode até simpatizar pela pessoa, ter uma boa impressão de uma primeira conversa, admirar alguns aspectos de sua personalidade, mas gostar, gostar mesmo é outra história. Vão se alguns meses, talvez anos, uma vida inteira para se estabelecer uma relação que permita dizer que você gosta de uma pessoa. (E aqui não falo de gostar no sentido de querer se casar ou ter relações sexuais com outro indivíduo).

O ódio, por outro lado, é gratuito e instantâneo. Você pode simplesmente bater o olho em uma pessoa e não ir com a cara dela, ser místico e dizer que a energia não bateu, ou que o anjo não bateu, ou que alguma coisa abstrata não bateu. Geralmente o desgosto é recíproco e, se parar para pensar, poucas coisas podem ser mais bonitas do que isso: duas pessoas que se odeiam sem nenhum motivo claro e aparente, sem levar nenhum dinheiro por isso, sem nenhuma razão e tampouco alguma consequência. Ninguém vai se matar, brigar no meio da rua ou sabotar o patrimônio alheio: as duas pessoas apenas não se tolerarão.

Pouco importa o que a outra pessoa venha a fazer. Ela pode dedicar uma vida inteira à caridade e no fim de sua jornada ser reconhecida como a verdadeira herdeira de Madre Teresa. Contribuiu com significativos avanços da ciência, foi extremamente talentoso nas artes plásticas, profissional exemplar, como eu disse, pouco importa.

Veja, me perco em todo esse devaneio para justificar uma antipatia por determinados vizinhos meus. Na verdade, eu nem sei se eles são os mesmos vizinhos de sempre, já que tenho a impressão de que já ocorreram mudanças na formação da casa, mas tenho a impressão de que todos se originam de um mesmo núcleo e se revezam na habitação.

Já foi estranho quando eles se mudaram em um carnaval e havia trinta bicicletas estacionadas na frente da casa deles. Depois recebemos informações sobre a atividade profissional que eles exerciam e tudo ficou ainda mais estranho. Ainda mais antipático quando carros de luxo apareciam estacionados na porta da casa e depois sumiam poucos dias depois. Aliás, os carros deles estão sempre mudando e já considero isso um motivo justo para criar desgosto. Ou o candidato a deputado que eles apoiavam, um cidadão completamente desconhecido. E que ainda se elegeu. E eu passei a não gostar dele sem nenhum motivo aparente também.

A casa ficou vazia e de repente surgiu um cidadão que puxava papo aleatoriamente e dizia que tinha acabado de voltar da Suíça porque sua mulher não se adaptou ao clima. Ele era vendedor ambulante e como é que eu podia acreditar nessa história. A mulher era uma senhora que ficava reclamando sozinha e guardava semelhanças com personagens aterrorizantes de filme de suspense infantil. O homem sumiu e sua esposa ficou, ou será que ele era casado com outra pessoa que nunca apareceu na história e essa mulher que morava com ele era uma figura aleatória? Talvez uma assombração que só eu veja.

O cachorrinho que foge e que a mulher fica gritando o nome de manhã e o cachorro não obedece. Até que o cachorro também sumiu, ou talvez passou a ser trancafiado em um cômodo que impossibilita suas fugas. Quando eles plantaram umas árvores para servir de cerca viva, como se fossem especialistas e as árvores morreram em menos de um mês, revelando que eles não tinham a menor certeza sobre o que estavam fazendo.

Surgem novas pessoas na casa e retornam algumas bicicletas. E um dia eles recebem visitas e uma criança que não sei se era visita ou se morava na casa se mostra absolutamente desprezível, o mais desprezível que um garoto de 9 anos possa ser. 

Começa a pandemia e parece que algumas pessoas que moraram ali durante um tempo já não moram mais. O hábito de sair pelo portão lateral ao invés de sair pela porta da frente. Hábito que é abandonado repentinamente. E então começam a fazer festas. Muitas festas. Festas demais. Todo dia. Se isso já seria algo muito estranho em tempos normais, não sei o que dizer o que representam nos tempos atuais. Carros param o tempo todo e chegam e saem, com os amigos que parecem todos babacas e umas amigas que saem para fumar e depois retornam e os meninos sempre com cerveja na mão. E todo dia é isso, os carros parados na frente da casa.

E quando eles resolvem colocar uma mesa no meio da rua como se a rua fosse propriedade deles e ficam jogando uma espécie de futevôlei com uma mesa no meio e gritam a cada ponto e escutam uma música eletrônica que parece tão atual quando uma música do Righeira e quem perde é obrigado a pagar flexões e eles ficam na calçada pagando flexões, sem camisa, enquanto os vencedores tiram sarro e, repito, estamos no meio de uma pandemia e ninguém usa máscara e eles passam a tarde inteira, adentram a noite nisso e não consigo pensar em nada que alguém poderia fazer para ser mais insuportável.

Pedindo cerveja depois das onze da noite e quando o coitado do motoboy chega eles o recebem sem máscara e o fazem esperar outro cara que está a caminho e este cara chega em alta velocidade, estaciona o carro bruscamente e joga seu cartão para o outro e canta a sua senha, enquanto entra rapidamente com uma menina para dentro da casa que parece estar sempre iluminada com uma luz negra. E eu vou na farmácia e na volta vejo uma pessoa sem máscara e é o vizinho e ele está comprando cerveja com mais três amigos, sendo que a orientação é para que não se vá em grupo no mercado e enfim.

Pode ser que eles contribuam para os avanços da medicina, da engenharia ou da assistência social, mas eu acredito que jamais conseguirei deixar de desprezar tudo o que eles fazem.

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