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Sempre fui uma pessoa melancólica, mas acho que nunca me senti como agora, como se estivesse assistindo ao crepúsculo da civilização. Como se estivéssemos em 1987 e Michael Stipe não parasse de cantar “It's the end of the world as we know it”. Mas eu não me sinto bem.

Lembro que quando eu tinha oito anos todo dia o Jornal trazia uma notícia sobre o Ébola, essa doença que até hoje é sinônimo de morte, essa febre misteriosa que sangrava até a morte os seus infectados. O filme epidemia com Dustin Hoffman e cenas de pessoas suando sangue em filas de conveniências não parava na prateleira da videolocadora. Mas o Ébola é tão mortal que nunca se espalhou para fora da África.

Depois vieram a Gripe Suína, Gripe Aviária, Influenza, H1N1, Sars, Mers, Antrax, mas tudo sempre ficou meio restrito, pareceu mais uma paranoia que sumiu do noticiário da mesma maneira como surgiu.

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Tão inesquecível quanto o 11 de setembro foi o 12 de setembro. O Dia Seguinte. O dia em que só se falava dos aviões, de uma nova guerra mundial e os professores não davam aula, porque precisavam responder aos alunos - do alto de suas autoridades professorais - se estávamos diante de uma catástrofe mesmo.

Mas, éramos todos adolescentes e vivíamos em nossa certeza adolescente da imortalidade. Além disso, eram tempos propícios para se ser anti-norte-americano, eram tempos em que víamos clipes do Rage Against the Machine, o Gabriel Pensador fazia sucesso falando da sua vontade de surrar pessoas com camisas dos EUA, depois vieram os filmes do Michael Moore e, enfim, os EUA se mereciam.

Três dias depois eu viajei para Barcelona e a vida parecia absolutamente normal. Apesar de toda solidariedade às vítimas, parecia que era um problema dos EUA. Os inúmeros atentados de anos posteriores abalaram todo mundo, mas nunca pareceram um problema de escala global, pareciam questões pontuais que seriam resolvidas com o recrudescimento das revistas pessoais e restrições de circulação em espaços públicos.

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Eu senti o colapso da sociedade mesmo durante a greve dos caminhoneiros em 2018. Ir ao supermercado e ver prateleiras vazias, pessoas estocando alimentos como se o mundo fosse acabar, relato de brigas por produtos, filas em postos de gasolina e a sensação de que estávamos a um grito da barbárie.

Mas também foi muito rápido, cinco dias de crise no máximo e tudo logo voltaria a velha normalidade, em pouco tempo esqueceríamos de como caos e civilização andam a uma distância de alguns centavos de combustível.

Também senti que o mundo tinha acabado uma semana antes das eleições de 2018. Era uma percepção mundial de que, não importava o que acontecesse dali alguns dias, o mundo já tinha acabado. Pouco adiantava não eleger o Bolsonaro. Apenas o fato de saber que o Bolsonaro PODERIA MESMO ser eleito já era suficiente para saber que havíamos falhado enquanto humanidade.

Mas nada como hoje. O coronavírus não é tão mortal, sabemos. A maior parte de nós vai sobreviver a doença, sabemos. Mas como é que sobreviveremos? Como será o luto para os milhares que vão morrer, em sua maioria idosos e com outros problemas de saúde? Como seguirá a vida de quem perder tudo durante as paralisações? Quantas pessoas irão recomeçar do zero? O colapso da nossa sociedade não está nos mortos, mas está na tragédia econômica de quem já não tinha muita coisa.

Um dia o aperto de mãos vai voltar a ser um gesto normal? O mundo voltará a ser como antes? Duvido muito. “A tournament of lies, offer me solutions, offer me alternatives and I decline”.

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Caminho com meu filho na rua para ele não ficar irritado enquanto seu jantar não está pronto. Aponto as estrelas e a luz dos postes, que de alguma maneira ele acha que pode pegar. Este pequeno ser de pouco mais de 70 cm e 8 quilos e menos de 10 meses, que é a coisa que eu mais amei na minha vida e de vez em quando me pego surpreso com essa constatação.

Duas criancinhas descem a rua de bicicleta falando sobre coronavírus. Penso em como deve ser difícil explicar tudo isso para crianças, porque todo mundo tem que ficar em casa, porque não dá para ir para escola, não dá para ver as outras pessoas, sem que elas fiquem com medo.

Fico aliviado por ainda não ter que explicar para meu filho os motivos pelos quais ele não vai mais na escolinha e sabe-se lá quando ele vai voltar. Ele só quer pegar a luz do poste e a placa de sinalização. Coisas que não mudam. Mas olho para ele e penso que o mundo que ele conhecerá não será aquele no qual eu sempre vivi.

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