Pular para o conteúdo principal

Minha avó

Minha avó não cozinhava bem. Ao que dizem, ela cozinhava mal, razão pela qual, ela nunca cozinhava quando eu estava lá. Acho que nunca comi a comida dela, uma situação que desfalca a maioria das histórias sobre avós.

Minha avó gostava de mostrar fotos. Sempre ia buscar um álbum que ela guardava no armário com uma centena de fotos. Fotos do começo do século, fotos de sua juventude, dos seus filhos ainda crianças. Me mostrava sempre as mesmas fotos, a cada ano que eu ia lá. Mas eu as via sempre como se fosse pela primeira vez. Quando eu já sabia alguma história sobre a foto em questão, fazia alguma pergunta despretensiosa, dando o gancho para que ela a contasse novamente. Percebia que ela se sentia bem contando a história, então, eu sempre fazia isso. Lá estava o tio Lico. Sua dezena de irmão homens. Seus irmãos que morreram num acidente de carro.

Minha avó sempre dizia que era uma boa aluna em história. Que seu sonho era ser professora de história. Mas ela parou de estudar na quarta série para trabalhar, e guardou esse sonho. Achava a história melancólica. Como melancólicos são os sonhos guardados.

Minha avó ia à igreja toda semana. Sempre me perguntava sobre minha religião e eu sempre dava uma resposta que a agradava. Os anos de colégio católico me ajudaram. Sempre alfinetava a decisão dos meus pais de não me batizar. Nunca a contrariava. Nunca contrario os velhos. Acho que eles já viveram muito, para ter que aturar contrariações (se essa palavra existir) dos mais novos. Não era uma questão de argumentos. Era uma questão de respeito. Quem tinha passado dos 80 anos pode pensar o que quiser da vida. Meu retorno a deixava feliz, e isso era bom. Ninguém viveu mais de 80 anos se não for para ser feliz.

Minha avó sempre escutava a rádio, prestava atenção no obituário. Lamentava a morte dos conhecidos e eram vários. Ia perguntar para minha tia avó se fulano que morreu era quem elas estavam pensando, coitado.

Minha avó sempre mandava eu informar meu pai sobre as notícias. O armazém que fechou, o fulano que se casou, o outro que morreu, o vizinho que mandou um abraço. Meu pai não se lembrava de nenhum deles, e eu sabia que ele não se lembraria. Mas eu informava.

Minha avó sempre me telefonava no meu aniversário. Nos últimos anos, ela estava meio surda e a conversa era meio surreal. Eu falava e ela não entendia. Ela entendia o que queria e continuava falando. Não tentava a corrigir.

Comentários

Andreza disse…
As vós são parecidas.

Postagens mais visitadas

Desgosto gratuito

É provável que se demore um tempo para começar a gostar de alguém. Você pode até simpatizar pela pessoa, ter uma boa impressão de uma primeira conversa, admirar alguns aspectos de sua personalidade, mas gostar, gostar mesmo é outra história. Vão se alguns meses, talvez anos, uma vida inteira para se estabelecer uma relação que permita dizer que você gosta de uma pessoa. (E aqui não falo de gostar no sentido de querer se casar ou ter relações sexuais com outro indivíduo). O ódio, por outro lado, é gratuito e instantâneo. Você pode simplesmente bater o olho em uma pessoa e não ir com a cara dela, ser místico e dizer que a energia não bateu, ou que o anjo não bateu, ou que alguma coisa abstrata não bateu. Geralmente o desgosto é recíproco e, se parar para pensar, poucas coisas podem ser mais bonitas do que isso: duas pessoas que se odeiam sem nenhum motivo claro e aparente, sem levar nenhum dinheiro por isso, sem nenhuma razão e tampouco alguma consequência. Ninguém vai se matar, brigar n...

Os 27 singles do Oasis: do pior até o melhor

Oasis é uma banda que sempre foi conhecida por lançar grandes b-sides, escondendo músicas que muitas vezes eram melhores do que outras que entraram nos discos. Tanto que uma coletânea deles, The Masterplan, é quase unanimemente considerada o 3º melhor disco deles. Faço aqui então um ranking dos 27 singles lançados pelo Oasis, desde o pior até o melhor. Uma avaliação estritamente pessoal, mas com alguns pequenos critérios: 1) São contados apenas o lançamentos britânicos, então Don't Go Away - lançado apenas no Japão, e os singles australianos não estão na lista. As músicas levadas em consideração são justamente as que estão nos lançamentos do Reino Unido. 2) Tanto a A-Side, quanto as b-sides tem o mesmo peso. Então, uma grande faixa de trabalho acompanhada por músicas irrelevantes pode aparecer atrás de um single mediano, mas com lados B muitos bons. 3) Versões demo lançadas em edições especiais, principalmente a partir de 2002, não entram em contra. A versão White Label de Columbia...

Tentando entender

Talvez a esquerda tenha que entender que o mundo mudou. A lógica da luta coletiva por melhorias, na qual os partidos de esquerda brasileiros se fundaram na reabertura democrática, não existe mais. Não há mais sindicatos fortes lutando por melhorias coletivas nas condições de trabalho. Greves são vistas como transtornos. E a sociedade, enfim, é muito mais individual. É uma característica forte dos jovens. Jovens que não fazem sexo e preferem o prazer solitário, para não ter indisposição com a vontade dos outros. Porque seria diferente na política? O mundo pautado na comunicação virtual é um mundo de experiências individuais compartilhadas, de pessoas que querem resolver seus problemas. É a lógica por trás do empreendedorismo precário, desde quem tem um pequeno comércio em um bairro periférico, passando por quem vende comida na rua, ou por quem trabalha para um aplicativo. Não são pessoas que necessariamente querem tomar uma decisão coletiva, mas que precisam que seus problemas individua...