Pular para o conteúdo principal

O medo nas estradas

Tatiana era a menina mais alta da 3ª Série. Nessa época em que as meninas crescem mais rápido e algumas acabam se destacando. A menina mais alta da turma costuma a ser uma figura caricata, meio abobada, tira notas baixas e se destaca nos esportes de força, como a queimada. Costuma a ser alvos de muitas piadas e invariavelmente bate nas meninas menores e acho que nos meninos também, afinal, ela é mais forte.

Numa dessas situações, Tatiana estava brigando com alguém - aquelas brigas de crianças se empurrando - escorregou e caiu em cima de mim, que estava sentado junto a parede. Fui parcialmente espremido contra a parede e fiquei meio zonzo. As outras pessoas em volta começaram a gritar, aquele grito de "eeee eeee", de quando alguém faz uma besteira. O alvo dos gritos invariavelmente irá sofrer algum tipo de punição.

Tatiana então se ajoelhou ao meu lado para pedir desculpas, jurando que não havia sido por querer. Falei que tudo bem e ficou por isso mesmo, tirando o gosto de sangue da boca das multidão. Digo até que fiquei meio impressionado porque Tatiana, a menina má, pediu desculpas, ela que parecia tão sem sentimentos.

No começo do ano seguinte, quando todos estaríamos na 4ª Série, alguém trouxe a informação, de maneira meio desconexa. Tatiana, aquela menina mais alta da turma, havia morrido num acidente de carro. Seu carro, com sua família, capotou em algum lugar e todos morreram.

Júlio, talvez Júlio César, era um professor de literatura na época do 3º Ano. Entrou no meio do ano, substituindo uma professora muito ruim. Ele teve que lutar contra a popularidade do seu antecessor, que saiu sem muitas explicações para a revolta dos alunos.

Júlio era um tanto quanto piadista, não necessariamente um bom piadista. Seu humor era ácido, mas ele estava mais para um Rafinha Bastos com ainda menos graça. Era especialista em, como se diz, "tirar" os outros.

Já estava fora do colégio, quando vi a notícia na televisão. Júlio morreu em um acidente de carro no interior do estado, quando estava indo visitar a família. Uma fatalidade, um caminhão caiu sobre o seu carro.

E assim ocorre todos os dias em todas as estradas. Pessoas com histórias diferentes que um dia não voltam.

Comentários

Postagens mais visitadas

O Território Sagrado de Gilberto Gil

Gilberto Gil talvez não saiba ou, quem sabe saiba, mas não tenha plena certeza, mas o fato é que ele criou a melhor música jamais feita para abrir um show. Claro que estou falando de Palco, música lançada no álbum Luar, de 1981 e que, desde então, invariavelmente abre suas apresentações. A escolha não poderia ser diferente agora que Gil percorre o país com sua última turnê, chamada "Tempo Rei" e que neste último sabado, 7 de junho, pousou na Arena Mané Garrincha, em Brasília.  "Subo neste palco, minha alma cheira a talco, feito bumbum de bebê". São os versos que renovam os votos de Gil com sua arte e sua apresentação. Sua alma e fé na música renascem sempre que ele sobe no palco. "Fogo eterno pra afugentar o inferno pra outro lugar, fogo eterno pra  consumir o inferno fora daqui". O inferno fora do palco, que é o seu território sagrado. Território define bem o espetáculo de Gil. Uma jornada por todos os seus territórios, da Bahia ao exílio do Rio de Janeir...

Aonde quer que eu vá

De vez em quando me pego pensando nisso. Como todos sabem, Herbert Vianna, dos Paralamas do Sucesso, sofreu um acidente de avião em 2001. Acabou ficando paraplégico e sua mulher morreu. Existe uma música dos Paralamas, chamada "Aonde quer que eu vá" que é bem significativa. Alguns trechos da letra: "Olhos fechados / para te encontrar / não estou ao seu lado / mas posso sonhar". "Longe daqui / Longe de tudo / meus sonhos vão te buscar / Volta pra mim / vem pro meu mundo / eu sempre vou te esperar". A segunda parte, principalmente na parte "vem pro meu mundo" parece ter um significado claro. E realmente teria significado óbvio, se ela fosse feita depois do acidente. A descrição do acidente e de estar perdido no mar "olhos fechados para te encontrar". E depois a saudade. O grande detalhe é que ela foi feita e lançada em 1999. Dois anos antes do acidente. Uma letra que tem grande semelhança com fatos que aconteceriam depois. Assombroso.

Pepe Mujica

 O ex-presidente uruguaio Pepe Mujica foi uma das maiores figuras dos tempos que vivemos. Apareceu para o mundo ao assumir a presidência do seu país, quando já tinha 75 anos. Ex-guerrilheiro de esquerda, que ficou preso por quase 13 anos durante a ditadura militar uruguaia, demonstrava o tempo todo uma serenidade que parece incompatível com a guerrilha. Talvez pela idade, não sei, mas Mujica se transformou em um guerrilheiro das palavras. Não governou com vingança contra aqueles que mal o fizeram, mas com ponderação. Era alguém capaz de tomar medidas que talvez não gostasse, por entender que era o que deveria ter sido feito. Era alguém pragmático nas miudezas, mas radical em seus princípios. Esta talvez seja sua principal virtude, em um tempo no qual a esquerda, pelo menos a brasileira, é pragmática nos princípios, mas radical nas pequenas coisas.  Um velhinho meio desajeitado, falava com aquele ar grave e cheio de sabedoria, como se fosse um velho personagem de um livro de Ga...