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500 dias depois: Simulado contra desastres

(Talvez inspirada pela última crônica do Antônio Prata, começo essa nova série: "500 dias depois". Textos que mostram uma visão diferente sobre fatos que presenciei, mas que minha situação profissional me impedem de publicá-los imediatamente. Resolvi escrever esses textos e submetê-los a uma quarentena de 500 dias, até que eles vejam a luz do dia).

A previsão era de que o Simulado contra desastres iria começar às 8h em ponto. Quando cheguei até o local, pontualmente atrasado em dois minutos, esperei que já veria pessoas correndo de um lado para o outro, fugindo da enchente imaginária que iria se abater sobre a Cohab São Gonçalo. Engano meu. Meus dois minutos atrasados foram suficientes para encontrar algumas pessoas sentadas sob uma tenda e alguns militares montando outras barracas. O pessoal da Defesa Civil chegou cinco minutos mais tarde. Sob um sol escaldante, começaram a organizar a tragédia.

Já havia alguns representantes da imprensa no local, todos chegando por volta das 8h para uma animada pauta de sábado. A exceção ficava para uns coitados de uma emissora de TV que haviam chegado às 7h da manhã até a beira do Córrego do Machado, esse foi o horário informado pela produtora do canal. Senti pena deles. Apenas 10 minutos seria tempo suficiente para se entediar, vagando por aquelas ruas.

Andei pela beira do córrego e cheguei até uma árvore onde uns 25 moradores do bairro esperavam embaixo de uma árvore. Todos estavam devidamente trajados com a camiseta do Simulado contra Tragédias. Um outro cidadão com uma camiseta do simulado passava instruções para a população e mais tarde descobri que ele era o presidente da Associação dos Moradores. Mais tarde descobri também que as camisetas exerciam um papel fundamental como moeda de troca para a participação dos moradores. Por alguma questão o povo adora receber essas camisetas institucionais de tecido ruim e estampa horrível.

Soube que a região da Cohab São Gonçalo sofreu com enchentes nos últimos quatro anos. Todo mês de janeiro vem uma enxurrada e a água sobe um metro acima do nível do córrego, alagando todas as casas da parte baixa do bairro. Todo o terreno foi invadido ilegalmente e há anos o poder público municipal discute a retirada desses moradores. Muitos não aceitam sair e todos voltam pra casa depois da enchente anual e vários aceitam receber uma camiseta para participar desse evento e outros tantos não aceitam serem transferidos para outra área. Sempre me sinto dividido em situações assim. Sei que muitos moradores não têm condições de ir para um lugar melhor, mas, da mesma forma, existem outros que, se retirados, venderiam suas casas e iriam para outra área invadida.

Em certo momento, o líder dos moradores deu uma ordem para que todos aqueles que se reuniam debaixo da sombra da árvore, para que eles voltassem para suas casas. O objetivo era tornar o simulado mais real, com a chegada de um carro da Defesa Civil tocando um alarme e avisando a todos que deveriam sair de suas casas. De fato, não fazia sentido aquela cena dos moradores embaixo da árvore esperando pelo caos.

De um simulado, eu esperava pelo menos alguma seriedade. Alguma tentativa de trazer alguma verossimilhança para aquela situação, com os moradores e, principalmente, os técnicos levando tudo isso a sério. No geral eu não notei isso. Era apenas mais um dia de trabalho. Aliás, um sábado de trabalho em que você poderia estar dormindo até mais tarde e descansando, mas que não, você está na Cohab São Gonçalo para um simulado. Eu me sentia assim e eles também. Mas acho que eles não tinham esse direito.

Os bombeiros simularam então o resgate de uma pessoa ferida. Desceram com seu carro até a porta da casa de uma moradora que se contorcia e gritava, em uma bela atuação dramática. Os socorristas a imobilizaram e colocaram em uma maca e a retiraram dali. Ótimo.Mas eu acho que um resgate assim ocorre todos os dias em vários lugares. Se fosse na minha casa ou em um alguma mansão do Alphaville, os bombeiros, o SAMU ou quem quer seja teria o mesmo trabalho. Não houve nada de especial neste resgate.

Às 9h da manhã um carro da Defesa Civil passou pelo bairro avisando que a chuva está chegando e que os moradores deviam sair de suas casas. Assim fizeram todos os camisetados, deixando a louça e a roupa suja de lado para ir de volta até a famosa sombra de árvore, para se proteger do sol que já estava a pino. Percebi alguns novos adeptos que também ganharam suas camisetas, essa moeda de troca universal. Na sombra da árvore os técnicos encaminharam todos por uma subida até outra rua, passaram em frente ao colégio e chegaram até o abrigo temporário, as tendas que estavam sendo montadas pelo pessoal do exército na hora em que eu cheguei. No abrigo temporário, 34 moradores se alistaram. E então, todos voltaram para casa.

Pronto, esse era o simulado contra enchentes, simulado em um dia de sol escaldante em Cuiabá. Técnicos da saúde ainda deram uma palestra sobre animais peçonhentos e os riscos da água da chuva para um pequeno grupo de moradores, que eu não sei o que é que eles ganharam para isso, talvez um café e um bolo. Eu pelo menos comi uma fatia de bolo de chocolate.

Penso que estávamos ali porque aquele era um simulado contra a chuva e como o presidente da Associação havia explica, quando chove ali, o rio sobe um metro. Na época da chuva, o carro dos bombeiros não conseguiria descer até ali para socorrer a atriz ferida, porque a rua estaria coberta de água. Eles não andariam tranquilamente com suas botas sobre a poeira, porque aquilo tudo estaria coberto de água. Nem a mulher que estava ali, deitada no cimentado do lado da casa estaria ali. Ela estaria boiando na água, ou teria sido levada pelas correntezas.

A partir desse momento, depois de toda essa simulação fake (simulação fake seria algo como o cúmulo da falsidade) eu passei a pensar no que é que eu iria escrever sobre o assunto. Qual o lado positivo desse encontro tratado com pouca importância por moradores, que só queriam saber de camisetas, e bombeiros, policiais, técnicos das mais diversas áreas que só estavam ali porque, enfim, a vida nem sempre é como a gente quer.

Tentei dar uma romantizada no assunto, partindo do princípio de que ninguém que participou do evento leria meu texto. E, quem leu, não estaria lá para saber o clima da simulação. A vida de assessor não é fácil.

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