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A Solidão do Seu Raimundo, parte 2

Seu Raimundo começou a cortar cabelos quando tinha 13 anos e, desde então, já se passaram outros 68. Ele conta que, quando começou, precisava subir em caixotes para alcançar a altura dos clientes.

Com orgulho, lembra que assentou seu salão na Avenida das Palmeiras – Raimundo Cabelereiro Unissex – em julho de 1990, o que faz do local um dos estabelecimentos mais longevos do Jardim Imperial.

Hoje a concorrência é forte, o bairro foi invadido por barbearias com parede de cimento queimado, mesas de sinuca, cerveja artesanal e uma lâmpada giratória colorida conhecida como Barber Pole. Uma delas funciona ao lado do salão de Raimundo. Desgostoso, ele conta que quando vê um cliente vindo pela calçada, sabe que o destino será o salão vizinho. “As pessoas pensam que eu não sei cortar cabelo porque eu sou velho”.

Os anos de experiência são fundamentais, ele diz, para que as mãos saibam se adaptar a cada tipo de cabelo. Nesses salões modernos, Raimundo reclama, só se passa a máquina de uma forma que qualquer pessoa conseguiria fazer.

Em uma manhã de sábado recente fui cortar o cabelo no Raimundo. Já era quase hora do almoço e eu fui seu primeiro cliente naquele dia. Em outros tempos, uma manhã de sábado registraria pelo menos seis cortes. Seu Raimundo reconhece que a crise está pesada, está tudo muito caro, as pessoas estão sem dinheiro, o coronavírus afastou todo mundo.

Mas a crise que atinge Seu Raimundo não é só a crise financeira ou sanitária. É uma crise do esquecimento. É a crise de chegar a uma idade onde as pessoas pensam que você não é capaz de mais nada. A crise de não se adequar a moda do seu tempo e ser passado para trás. Uma tremenda injustiça, porque não há nada de retrô nessas barbearias modernas, milimetricamente planejadas para parecerem antigas. Nada pode ser mais original do que o salão do Seu Raimundo, com sua TV passando jornal, algumas revistas antigas, cheiro de xampu e creme.

Todo dia quando eu passo em frente ao salão do Seu Raimundo ele costuma estar sozinho, esperando por clientes que talvez nunca venham. Ele diz que já recebeu propostas para vender o imóvel, mas que, enquanto for vivo não se desfaz do seu salão, porque isso é a sua vida. “Daqui a pouco, quando eu morrer, meus filhos decidirão o que fazer com isso”.

Portanto, se um dia você estiver passando pela região do Jardim Imperial e resolver cortar o cabelo, dê uma chance ao Seu Raimundo. Ele corta cabelos desde a época do segundo mandato do Getúlio Vargas e cobra 30 reais. Está vacinado e usa máscara. Leve dinheiro, porque a filha dele não pagou a internet esse mês e a máquina de cartão não está funcionando.

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