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A narrativa de uma realidade paralela

Liguei a TV ontem exatamente às 20h05, para ver como seria a cobertura política do Jornal Nacional sobre as manifestações do dia. Estava 10 minutos atrasado em relação ao início do jornal e, assim, acredito que perdi o que foi mostrado sobre o #EleNão. Sintonizei a Globo no momento em que começava uma matéria sobre a volta de Bolsonaro para casa em um voo que teve xingamentos e gritos de apoio.

Logo depois, o jornal mostrou as manifestações, em sua maioria carreatas, feitas em apoio ao presidenciável do PSL. Pessoas de verde e amarelo em Copacabana, buzinaço em Teresina, Joinville, Divinópolis, 16 cidades no total. Uma delas, no interior de São Paulo, contou com a presença de um dos filhos do capitão. Bolsonaro ainda foi entrevistado dentro do avião e repetiu que, pelo o que vê nas ruas, não aceitará outro resultado que não seja sua vitória em PRIMEIRO TURNO. Falou sobre fraude nas urnas.

Houve tempo ainda para uma matéria com a ex-mulher do candidato, antes do início da cobertura protocolar da agenda dos outros concorrentes.
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Nunca me esqueço de um programa no Globo News, realizado na véspera da cassação de Dilma Rousseff no Senado, com a presença dos senadores Lindbergh Farias e Ronaldo Caiado, representando oposição e situação prestes a inverterem de papel. Em certo momento questionado se já não se considerava derrotado, Lindbergh deu a entender que o impedimento era um fato consumado, mas que naquele momento a batalha era outra. A disputa era pela narrativa histórica do acontecimento.

Dois anos depois do impeachment, com o fracasso do governo Temer e a prisão de Lula - líder das pesquisas, o PT conseguiu ter sucesso em sua estratégia e a narrativa do Golpe Parlamentar se consolidou em um bom apanhado da sociedade. A Batalha pela Narrativa. Eis a grande briga dos tempos atuais.
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Voltando ao dia de ontem, a minha bolha na internet, de tendência mais progressista, noticiou as manifestações como o sucesso do #EleNão, com uma quantidade de pessoas muito grande nas ruas de São Paulo, do Rio de Janeiro, Fortaleza e Salvador. Mais uma boa quantidade em Porto Alegre e Brasília, manifestações menores e maiores passando por Curitiba e Juiz de Fora.

Há no entanto, um ponto de ruptura nessa minha bolha do Twitter. Desde o final de agosto, com a definição das candidaturas, passei a seguir todos os candidatos à Presidência e à Vice-Presidência da República que estavam por lá. Incluindo o vice do Eymael, que infelizmente abandonou a rede social que ele utilizava apenas para compartilhar mensagens de Bom Dia. Então, sim, eu estou a mais de um mês seguindo o Bolsonaro no Twitter.

Durante o período em que ele esteve hospitalizado sua frequência de postagens diminuiu o que facilitou meu papel de seguidor. Mas, sua volta para casa ontem deu uma amostra maior da bolha do outro lado.
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O termo pós-verdade se popularizou nas eleições norte-americanas de 2016 com a eleição de Donald Trump. Com o tempo, "pós-verdade" passou a ser comparado equivocadamente com as Fake News. As notícias falsas são um elemento da chamada pós-verdade, mas esta equivale a um conjunto de fatores que faz com que as convicções pessoais estejam acima dos fatos objetivos. As notícias falsas servem apenas para confirmar esses convicções e mostrar que você estava certo.

De certa forma, a pós-verdade é uma espécie de realidade paralela na qual é muito confortável se viver. Afinal, não deve haver lugar melhor para se estar do que aquele no qual você está sempre certo.

Ainda sobre Trump, uma das análises sobre sua atuação na disputa de 2016, é que ele destruiu todos os seus adversários por conta de um simples fator: sua argumentação não parte da mesma lógica comum dos oponentes. Se você afirma veementemente que o céu é amarelo e o sol é uma bola de gelo e que esta é a sua opinião, não há argumentos para convencer o contrário. Essas realidades paralelas do mundo atual ajudam a explicar porque as discussões são cada vez mais complexas e violentas. Não dá para duas pessoas que vivem em mundos opostos discutirem ideias, porque simplesmente não há uma mínimo denominador comum para o debate.
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O Twitter de Bolsonaro está on fire desde ontem, com postagens do próprio candidato e retuítes de seus filhos, apoiadores aparentemente anônimos mas que se denominam grandes influenciadores políticos e outros como Silas Malafaia. Entre vídeos com manifestações numerosas e ruidosas de eleitores, uma tendência forte para fortalecer uma realidade paralela em que as manifestações do #EleNão foram um fracasso e foram convocadas pela grande mídia, que escondeu as demonstrações de apoio muito maiores dos eleitores do candidato do PSL.

Um retuíte do seu filho me chamou a atenção: "A narrativa fraude nas urnas vem sendo mostrada a cada dia. Um presidenciável que perdeu pífiamente (sic) eleição na cidade de São Paulo, ser comandado por presidiário que antes de ir para a cadeia rodou o Brasil sendo desprezado por onde passava, não para de subir nas “pesquisas”." diz Carlos Bolsonaro.

O objetivo me parece claro. Reforçar entre os seguidores do Bolsonaro que eles são a maioria inconteste da população e que apenas uma fraude nas urnas eletrônicas poderia deixar de eleger o capitão no PRIMEIRO TURNO. Nesta realidade alternativa, é muito mais lógico que as pesquisas eleitorais fabriquem dados que serão reproduzidos pelas urnas do que acreditar que urnas e pesquisas resumam as opiniões do público.

Também me parece claro que, com a inevitável ida para o segundo turno das eleições, haverá gritaria e insurreição do lado bolsonarista. O próprio filho dele diz "A narrativa da fraude nas urnas" (acredito que faltou um da entre "narrativa" e "fraude" no tuíte original). Bolsonaro no momento constrói essa narrativa da fraude eleitoral, como uma tentativa de garantir sua eleição, caso ela não venha no voto popular. Com a proximidade de um segundo turno caótico entre o PSL e o PT, a narrativa será importante para a definição. Se Bolsonaro perder no voto, mas vencer a batalha pela narrativa, estará aberto o caminho para uma revolta popular que pode resultar em um golpe de Estado, sob o pretexto de garantir a lisura do processo. A própria narrativa da fraude pode ser insuflar sua massa eleitoral e aumentar os seus votos no segundo turno.

Porque tanto o Lindbergh lá atrás, como o Bolsonaro agora, entenderam: nesse mundo da pós-verdade e das diversas realidades alternativas e paralelas, a batalha mais importante de se vencer é a pela narrativa histórica.

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