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O Uruguai de Pepe Mujica

Nos últimos tempos, José “Pepe” Mujica se transformou em um ícone mundial. Simpático, carismático, com boas ideias e discursos bons e bonitos, Mujica parece ser aquele avô que todos nós gostaríamos de ter, o professor que queríamos ter encontrado em algum momento, uma pessoa com quem poderíamos tomar um café e filosofar sobre a vida. Acontece que este alguém está na presidência de um país, o pequeno Uruguai, o que dá projeção mundial as suas falas. Aconteceu no épico discurso feito na ONU. Enquanto todos discutiam questões chatas, Mujica perguntava, afinal, o que queremos da vida?



Mujica é um presidente incomum. Para começar, é assumidamente ateu. Não se veste com a pompa e circunstância que qualquer auxiliar de vereador tem. Utiliza suas botas velhas e seu casaco surrado. Dispensou a residência oficial dos presidente para continuar morando em sua chácara nos arredores de Montevideo ao lado de sua mulher e de uma cadela manca, enlouquecendo os seguranças. Pepe dispensa protocolos e é capaz de na mesma frase chamar Christina Kirchner de velha e o falecido Nestor de “caolho”.

Uma pessoa normal que dirige um país, que chama a atenção por ser o 3º melhor IDH da América do Sul, com a segunda maior renda per capita e apenas 1,7% dos seus 3 milhões de habitantes em situação de pobreza extrema (Montevidéu tem o melhor IDH da América Latina). País que erradicou algumas doenças e o analfabetismo, mesmo sem possuir indústrias e dependendo basicamente da exportação de lã, couro, soja e carne.

Recentemente também chamou a atenção pelo liberalismo, ao “estatizar” a produção da maconha e por criar leis que regulamentam a prática do aborto. Qual seria o segredo do Uruguai, este lugar que parece o paraíso na Terra? Pepe Mujica deveria ser escolhido o presidente do mundo? O que os uruguaios acham disso?
A casa de Mujica

Bem, primeiro vale lembrar a história política do país. Durante os quase 200 anos da república uruguaia, o poder foi dominado por dois partidos, o Blanco e o Colorado. Os colorados predominaram durante a maior parte do tempo, ligados a elite urbana uruguaia. O responsável pelo golpe militar de 1973, Juan María Bordaberry, era colorado. Do outro lado estão os blancos, ligados aos setores mais conservadores e aos produtores rurais.

Esse bipartidarismo se manteve até a eleição do médico Tabaré Vásquez em 2006, pela Frente Amplio, coalização de partidos de esquerda do Uruguai. Vásquez foi o presidente mais popular da história do país, com 71% de aprovação e elegeu Mujica (seu ministro da Agricultura) como sucessor e a maior parte do congresso. Tabaré também parece ser o favorito para suceder Mujica, uma vez que no Uruguai não existe reeleição.

Mujica atualmente tem uma aprovação que oscila entre 40% e 50%. Teve altos índices de aprovação no primeiro ano do seu mandato, mas depois começou a enfrentar um desgaste relacionado a questão da maconha, do aborto e do casamento homossexual, questões que não são um consenso nem dentro do seu governo.

Cheguei em Montevidéu em uma sexta-feira. No trajeto entre o aeroporto e o hotel percebi alguns panfletos apócrifos afixados em postes, com a cara de Mujica e de mais algum cidadão. Não voltei a encontrar esses panfletos no centro da cidade para descobrir do que tratavam.
Manifestantes pela terra e pela vida

Mas, nesse mesmo dia, pude presenciar um protesto na Avenida 18 de Julho. Protesto curioso, que reuniu estudantes, idosos e pessoas a cavalo gritando palavras de ordem. Protesto curioso, que foi incrivelmente calmo, com os manifestantes ocupando apenas uma faixa da avenida e deixando o espaço restante para a circulação das pessoas. Eles seguiram por toda a avenida até a Praça da Independência, na porta da Ciudad Vieja, onde ficam localizados os principais cartões postais da cidade, como o Palácio Salvo, o Teatro Sólis, o Monumento a Artigas (herói nacional) e o espelhado e moderno prédio da Presidência da República.

Mesmo neste clima ameno, o prédio da presidência foi isolado com grades de separação e do outro lado se encontravam uma dezena de policiais vigiando sua entrada. Não soube de nenhum quebra-quebra, mas a impressão é de que não era um dia normal. Mas, afinal, o que esses manifestantes queriam? Uma pauta extensa.

Um dos pontos principais era um projeto de mineração a céu aberto encabeçado por uma multinacional indiana no interior do Uruguai. Eles também reclamavam de uma fábrica de celulose na divisa com a argentina. A preocupação é ambiental, por conta da poluição, mas também há o lado social, porque os manifestantes entendem que a mineradora irá tirar a terra de muitos pequenos produtores (ao que eu percebi, existem muitos pequenos produtores no Uruguai). No lado mais socialista da questão, argumenta-se que esses projetos beneficiam apenas as grandes empresas e não o povo uruguaio, indo contra as próprias ideias de Mujica.

Os manifestantes pedem a terra para o povo uruguaio e ao mesmo tempo clamam por um Uruguai mais “Artiguista”, seja lá o que isso signifique. Curioso como a América Latina tem o poder de transformar figuras desligados do socialismo (Perón, Getúlio, Bolívar) em símbolos da esquerda.
Monumento a Artigas

A questão do aborto também pegou pesado por aqueles lados. Não vi tanta repercussão nas ruas sobre o projeto da maconha (que entra em vigor em 2014), apesar de ler opiniões contrárias nos jornais. A marijuana tem sido mais utilizada para fazer piada com Mujica, algo no nível de “velho maconheiro”.

Já com o aborto não. Nos protestos daquela sexta-feira, vários cartazes se diziam “em defesa da vida”. Um deles até falava em “defesa da terra e da vida”, o que tira um pouco o ar social do protesto, transformando-o em uma manifestação ao melhor estilo “Tradição, Família e Propriedade”, representado no tripé “Artigas, Vida e Terra”. Dava também um ar de manifestação social engrossada pela oposição conservadora de olho nas eleições que se aproximam.

De certa forma, Mujica me lembra Lula e o governo do PT, com a diferença de que não vi nada relacionado a corrupção.

O presidente uruguaio é criticado pelos setores mais conservadores, também pela questão do aborto e etc, mas por conta de seus programas assistencialistas. Há no Uruguai um programa similar ao Bolsa Família e para alguns, ele só serve para sustentar vagabundos que não trabalham e recebem por isso. “Podem ficar fumando sua marijuana sem trabalhar”, me disse uma pessoa.

Para os setores mais a esquerda, talvez para os mais intelectuais, o governo de Mujica e, de certa forma o governo da Frente Amplio, não promoveu as mudanças que prometeu. Seriam um pouco mais do mesmo, seguindo a mesma política macro que já era utilizada pelos históricos Blancos e Colorados. Essa acusação já fez até surgir um novo partido de esquerda, descontente dos caminhos tomados pela Frente. Algo como o PSOL.
Praça da Independência. No canto direito, as grades de separação.

No final, fico com a impressão de que o presidente dos outros sempre parece mais legal.

Agora, algumas impressões pessoais.

Viajando pelo Uruguai pela segunda vez (a primeira foi em 2004), me parece que Montevidéu está um pouco menos cuidada. A cidade ainda dá uma sensação de calma e tranquilidade, suas ruas tem um charme decadente, mas os prédios parecem um pouco menos cuidados. O Uruguai também está muito mais caro do que estava há dez anos, se você for até lá, se prepare para gastar um valor razoável nas refeições (R$ 25 por pessoa, chorando). Uma pesquisa recente indicou que o Uruguai é o país onde a classe média mais gasta com supermercado, o que abre uma dúvida: o ar antigo do Uruguai é uma questão de desapego material ou de falta de dinheiro do povo?

O país é um pequeno paraíso fiscal, a Suíça sulamericana. É impressionante como o dólar circula e é aceito paralelamente no comércio uruguaio. Existem dezenas de casas de câmbio na Avenida 18 de Julho e depois de um tempo você percebe que elas não existem apenas para trocar dinheiro de turista. Os uruguaios tem suas reservas em dólar, os hotéis tem tarifas em dólar. Aliás, uma dica: se for para o Uruguai, prefira pagar o hotel em dólar e, dependendo do câmbio, faça saques em dólar nos caixas eletrônicos locais (sim, isso é possível lá). A taxa de câmbio do dólar em relação ao peso uruguaio costuma a ser mais favorável do que a do Real.

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