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Magnólia

Enquanto o relógio do aplicativo de corrida ainda chegava no seu primeiro minuto, me deparei com três sapos na esquina da rua de baixo. A situação me pareceu estranha, mas não quis criar nenhuma teoria sobre isso. Aos poucos, enquanto eu ganhava mais quilometragem e passava por mais ruas fui percebendo que todas elas estavam infestadas de sapos. Sempre em grupos de três ou quatro, exceção feita a um, o mais assustador dos sapos que eu já vi - e os outros sapos também deviam pensar isso, pois ele estava pulando sozinho embaixo de um poste.

A cada nova rua que eu entrava, lá estavam a pequena quadrilha de sapos e eles logo se dispersavam quando eu me aproximava, como se fossem um grupo de anfíbios subversivos percebendo a chegada de uma viatura policial.

Sapos tem um estranha maneira de se portar diante dos inimigos. Eles ficam completamente paralisados a medida que você se aproxima deles. Esses pré-históricos animais se camuflam muito bem em seu habitat natural e acho que a estratégia deles é a de buscar a indiferença pela imobilidade, torcendo para que o predador não perceba que ele está ali. Tive que desviar de inúmeros sapos que pareciam não calcular que a parada deles coincidia com uma futura pisada minha.

Sapos e mais sapos. Uma infestação de sapos. Meu condomínio virou uma versão de baixo custo de alguma praga bíblica. Fui ficando mais e mais intrigado com aqueles grupos anfíbios embaixo dos postes até que eu percebi que a verdadeira infestação não era de sapos; estávamos, na verdade, no dia da revoada dos cupins.

Esse dia misterioso, que se repete anualmente em uma data indefinida. Cupins começam a se bater em todo ponto de luz, se queimam e caem no chão, perdem suas asas, morrem afogados em piscinas, transformam o chão em um tapete de asas caídas. Nem sei se devo chamar esse dia de revoada dos cupins, mas os sapos certamente tem um nome perfeito para esta data: banquete.

Os sapos se fartavam com aquela quantidade enorme de insetos dando bobeira e voando tontamente próximos ao chão. Era como se estivessem em um rodízio de insetos all incluse. Cumpriam ali seu papel na cadeia alimentar, impediam uma infestação de insetos no que talvez fosse uma versão ainda mais real de uma praga bíblica. Controle de pragas. Percebi com espanto e satisfação o momento em que um sapo jogava sua língua para fora para capturar um cupim que fazia o último rasante de sua vida.

Mas, nem tudo é alegria para os sapos. Se eles tanto ficam embaixo dos postes é porque na luz eles conseguem ver o seu alimento se movendo. Isso também acontece quando um automóvel com luzes acessas passa por onde eles estão. Ao ver as asas de um cupim refletindo a luz automotora, o sapo pula alegremente para o meio da rua. Como ele tem essa tendência de ficar paralisado diante da presença inimiga, o que o sapo acaba por fazer é uma alegre tentativa de suicídio. Tudo dependerá de sua sorte para definir se a roda do carro passará sobre seu corpo, o que ocorre com certa frequência.

A cada volta que eu dava, aumentava o número de carcaças anfíbias, que vão ficando cada vez mais achatadas, até se transformarem em um complemento malcheiroso do asfalto.

O aspecto pré-histórico e de certa forma repugnante desses animais provoca pavor e asco em boa parte dos seres humanos. Muita gente não consegue conviver com estes bichos que não fazem nada demais, além de controlar o número de insetos e vez por outra te dar um susto ao se mover no escuro. Sim, eles muitas vezes parecem te olhar nos olhos, o que pode ser um pouco intimidador.

Só que esta quantidade enorme de sapos acaba por ser um convite para a barbárie. Na minha rua, um homem com um rodo começou a espantar os sapos, diante do seu filho e da sua esposa, mostrando que o cidadão médio brasileiro não economiza esforços quando o lema "proteção da família" é posto na mesa. Como o sapo permanecia apenas dando uns dois pulos para ao lado ao invés de, não sei, sair correndo desesperado da ameaça humana, o cidadão começou a bater no sapo com o rodo, até o momento em que o bicho se fez de morto (sapos se fazem de morto muito bem).

Já matei baratas, aranhas, moscas e mosquitos, mas digo que sapos vão além do que minha ética permite. Não se mata um animal deste tamanho, que não lhe provoque nenhuma ameaça, e que ainda vai derramar sangue. O sangue é um bom limiar para a chacina. Observei a cena com um pavor interno.

Era um sapo enorme, que foi empurrado pelo rodo para o meio da rua, porque o cidadão provavelmente não era capaz de tolerar o cadáver anfíbio a menos de um metro da calçada da casa que abriga a sua família. O menino de cinco anos gritava que o sapo era muito gordo, o que poderia ser enquadrado como um caso de zoogordofobia. Olhei o sapo com as costas no chão e as patas dobradas, na clássica posição de se fingir de morto.

Segui pelos quilômetros e minutos do aplicativo para mais uma volta e quando retornei a este ponto, o enorme sapo não estava mais lá. Provavelmente esperou que a insensatez do homem se afastasse para ir a outro ponto buscar seus alimentos.

Olhei pelas ruas no dia seguinte e não haviam mais insetos se batendo nas lâmpadas dos postes e os sapos deviam estar todos nos brejos das redondezas.

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